de novo aconteceu a dor, o ardor do pó escuro, esquálido, recaindo sobre a pele. e talvez, dessa vez tenha sido mais doloroso ao imaginar, e mais verdadeiro do que quando fora realidade. foi? nunca acreditei naquela madrugada, nos passos lentos embriagados de pesar que se arrastavam por entre os carros e putas aceleradas, em que a chuva fina descia em lágrimas e encharcava a imitação persa no hall de entrada, enquanto eu esperava pelo elevador, elevando a dor, e levando a dor que não escoava. não acreditei nem mesmo na palidez da manhã seguinte, no café requentado quebrando jejum, na caneca, quebrada em mil pedaços no chão da cozinha, no som vermelho estilhaçado quebrando o silêncio e a palidez do domingo, na água suja escorrendo negra sobre a cerâmica do piso frio, por entre aquele eu fragmentado, reduzido a cacos.
foi. e eu nunca quis acreditar. ou preferi não engolir aquele gélido líquido escuro, acreditando que, como nessa noite, tudo aquilo fora um sonho ruim, sumo de grãos apodrecidos coados em uma imaginação fértil, resíduos que entrariam em decomposição facilmente. mas essa podridão às vezes germina, e essa noite, como em outras muitas, a dor brotou mais verossímil e menos palatável do que quando ocorreu naquela atmosfera artificialmente real, mesmo sem chuva, ou carros e putas, sem o carpete, nem o vermelho sobre a cerâmica.
alucinações reais reaquecidas que se misturaram na xícara.
só acredito na dor quando desce pela garganta.
e mesmo consciente de ter despertado, as sobras da dor ainda residem ao fundo, e eu não quero acreditar na veracidade desse sonho, ou em um passado frio relido na borra úmida. tento manter-me acordado, o café passado que não côa a dor. o coador sujo na pia, só ecoa os fatos esperando que alguém o lave com suas alvas desculpas insolúveis. as manhãs seguintes, sempre são assim, amargas. a cafeína que já não mais funciona...
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